Uma curiosa publicação intitulada Sobre a imortalidade de Ruy de Leão traz dois contos de Machado de Assis e os classifica como textos de ficção científica.
O prólogo, bem cuidado, traz informações importantes sobre o desenvolvimento do gênero no Brasil, abrindo espaço assim para que os textos do bruxo do Cosme Velho fiquem em lugar de destaque, quase como um verdadeiro marco da produção da chamada FC nacional.
O esforço é válido para os milhares de fãs de um gênero visto com restrição pela crítica literária, de hoje e de sempre.
Ficção científica
Faltou, no entanto, elaborar os conceitos que caracterizariam um texto de ficção científica. Em outras palavras, o prólogo ganharia muito se enumerasse os elementos que um texto precisa apresentar para ser classificado como representante do gênero.
No caso dos contos publicados, a chave da argumentação é a imortalidade do personagem.
Em resumo, os dois textos estão relacionados por Ruy de Leão, personagem que, tendo tomado um elixir tamoio, passou a ser imortal. No segundo conto, a imortalidade é narrada ao longo dos séculos, enveredando por uma espécie de viagem no tempo retrô.
Memórias Póstumas de Brás Cubas
Impossível ler os contos sem se lembrar de Memórias Póstumas de Brás Cubas, obra máxima do autor e marco da história literária nacional.
O defunto autor Brás Cubas aparentemente não possui nada de Ruy de Leão, tanto que sua condição de defunto está muito bem definida nas páginas iniciais do livro. Uma condição oposta ao do eterno vivente dos contos.
Romantismo
Entretanto, uma leitura em paralelo dos textos permite aproximá-los não pelo que poderiam representar de fantasioso, mas de crítica implacável ao romantismo do século 19.
Lendo por esse viés, os textos corroem as bases do romântico ironicamente. De um lado, pela narrativa romântica minada desde o início pelo foco narrativo do defunto. De outro, pela transmutação do espírito indígena representado pelo elixir tamoio numa porta para a imortalidade da alma.
Nesse sentido, a narração eminentemente burguesa ameaçada pelo olhar do defunto se aproxima da cultura indígena esfacelada que as cores fortes do espírito romântico esforçam-se em nutrir com ideais cavalheirescos.
Com Ruy de Leão e Brás Cubas, Machado de Assis mina com elegância irônica o status quo de um país que vive até hoje na ilusão do que herdou e do que apenas conseguirá entender quando acabar.
Indústria cultural
Por tudo isso, o rótulo de FC, assim como qualquer outro, talvez seja pequeno para comportar tamanha composição. Mas, se serve para chamar a atenção para textos pouco conhecidos do autor e fazê-los circular por onde normalmente não estão, que seja estampado na capa. Afinal de contas, clássicos devem ser reciclados para manterem alimentadas as engrenagens da indústria cultural.
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